A autonomia patrimonial das sociedades empresariais é considerada óbvia por operadores do direito, conforme o art. 49-A do Código Civil. Contudo, para holdings patrimoniais, propõe-se uma “autonomia mitigada”, comparando ao paradoxo do Navio de Teseu, onde a identidade de um navio substituído peça a peça é questionada.
A ideia da autonomia patrimonial atrelada à personalidade jurídica de sociedades empresarias está de tal maneira enraizada no consciente coletivo dos operadores do direito que o teor do art. 49-A, parágrafo único, incluído no Código Civil por força da lei 13.874/191, foi descrito como “óbvio” e “mais ‘ideológico’ do que efetivo ou com concreta relevância prática” pelo emérito professor Flávio Tartuce2.
Sem a pretensão de refutar a conclusão do ilustre mestre, especialmente quanto ao equívoco da norma em relação às fundações e associações3, o que propomos é uma reflexão acerca da existência de uma “autonomia mitigada” para o caso específico de holdings puramente patrimoniais.
Para tanto, tomaremos como ponto de partida o paradoxo do Navio de Teseu.
A premissa do experimento mental é a seguinte: Teseu, o herói grego, fez sua famosa viagem ao Labirinto construído por Dédalo a mando do rei Minos em Creta num navio de trinta remos. Assumamos que no trajeto, uma das tábuas que o compunham foi trocada por outra prancha robusta e perfeitamente ajustada à embarcação.
Se, no curso da travessia, a operação se repetiu até que nenhuma das peças originais permanecesse quando atracou vitorioso em Atenas, trazendo consigo os jovens resgatados, seria aquele o mesmo navio que deixara a costa no início da heroica jornada?
Thomas Hobbes examina e amplia o escopo do paradoxo4, imaginando que as tábuas descartadas teriam sido reunidas e remontadas na mesma ordem em que retiradas, até o reestabelecimento do trirreme, lado a lado com aquele que chegou ao porto ateniense.
Na segunda hipótese, a questão proposta por Hobbes é de qual seria o verdadeiro Navio de Teseu.
Sua sugestão é de que “se nenhuma parte da matéria for a mesma, então é numericamente outro navio, se parte da matéria permanecer e parte for mudada, então o navio será parcialmente o mesmo, e parcialmente não o mesmo”5.
Para os fins deste artigo, tanto a questão central quanto as implicações são muito mais simples: se uma holding que não exerce atividade empresarial, possuindo patrimônio exclusivamente “não operacional”6 transferir parte seus bens para uma segunda holding, enquanto constrita a participação do sócio, permanecem sendo parte daquela em relação ao crédito garantido?
Nossa conclusão é positiva, pois se são os bens e direitos reunidos sob o véu da personalidade jurídica que constituem sua essência, sua raison d’etre, então o dever de preservação de sua integralidade inerente à constrição impõe sua vinculação ao processo, ainda que, formalmente, ausente responsabilidade direta entre a pessoa jurídica e a obrigação sub judice.
Vale dizer: se transferidos os bens de uma sociedade para outra enquanto constrita a participação societária do devedor, então a garantia da execução deve acompanhá-los, independente da licitude formal da operação.
Voltando-nos ao plano da ciência jurídica aplicada, encontramos na lição de Gladston e Eduarda Cotta Mamede7 raciocínio semelhante:
“Com efeito, os sócios de uma holding, sejam pessoas físicas ou jurídicas, já têm em seu patrimônio pessoal os títulos societários (quotas ou ações) que, enfim, correspondem a parcelas do capital social da sociedade (a holding). Esse capital social não se confunde com o patrimônio social. O patrimônio social pode elevar-se como resultado das atividades sociais, incluindo a possibilidade de incorporação de lucros. Contudo, se o patrimônio social é o resultado direto da integralização de capital, não tendo merecido incorporações, a dissolução da sociedade determinará mero reembolso dos sócios, mormente quando haja mero rateio dos títulos que compõem o acervo patrimonial da holding, afastando até a verificação de lucro na alienação dos títulos para que o rateio se faça em dinheiro. O mesmo parâmetro aplica-se à resolução da sociedade (a holding) em relação a um ou alguns sócios, bem como na redução de seu capital social, ainda que paga em dinheiro, desde que não haja acréscimo patrimonial para o sócio. Destaque-se que essa equação não se altera pelo argumento de que os títulos societários valorizaram-se; essa valorização de mercado apura-se na alienação. E no rateio dos títulos não há alienação. Os títulos serão inscritos na declaração de bens dos sócios pelo valor contábil que mantinham na holding; somente quando alienados se verificará lucro ou não, podendo haver mesmo prejuízo. O mesmo parâmetro deve ser observado quando o patrimônio da holding é constituído por bens imóveis ou móveis, e não apenas por títulos societários (quotas ou ações).”
Se, pela ausência de atividade econômica, opera-se um liame direto de correspondência entre o patrimônio da holding e do sócio, então a eficácia da tutela executiva exige que incidam sobre a pessoa jurídica as mesmas limitações aplicadas ao executado.
Em seus Comentários ao CPC, Pontes de Miranda8 pondera acerca dos efeitos da penhora enquanto instituto:
“A penhora não é penhor, nem é arresto, nem uma das medidas cautelares. O que nela há é expropriação da eficácia do poder de dispor que não há no arresto. O ato é processual e já, posto que ainda insuficientemente, executivo. Não há nulidade de negócios jurídicos relativos à venda (por exemplo) de bens penhorados. Pode haver mesmo doação. O que não é eficaz é qualquer transmissão desde logo. Se o devedor promete vender e desde logo solve a dívida, extingue-se a eficácia da penhora. As alienações dos bens penhorados, enquanto existe e é eficaz a penhora, são ineficazes, no plano do direito processual. Vale, no plano do direito material, o próprio ato de transmissão, mas a ineficácia, no plano do direito processual, tem como consequência que os atos de direito material foram ineficazes e continuam ineficazes. Mais uma vez temos de refletir a distinção, cuja clareza se deve a A. THON, desde 1878, entre direito de que se dispõe e poder de dispor de um direito. O poder de dispor foi retirado, processualmente, ao devedor, em virtude da penhora.”
Conquanto a mais abalizada doutrina contemporânea desafie esta leitura9, pode-se considerar com segurança a limitação ao uso e gozo da coisa penhorada, porquanto a “subtração, a supressão, a destruição, a dispersão e a deterioração da coisa penhorada constituem ilícito penal (entre nós, art. 179 do CP), não houvesse a constrição, e em princípio, ao proprietário afigurar-se-ia lícito destruir o que é seu”, como ensina o professor Araken de Assis10.
O que cumpre indagar no exemplo examinado é se essa limitação do poder de dispor ou, como prefere o laureado jurista, a consequente ineficácia perante o processo11, se estende sobre decisões tomadas pela pessoa jurídica, terceira formalmente estranha à execução, que impliquem em redução objetiva do valor atribuído às quotas penhoradas quando da liquidação imposta pelo art. 861, III, do CPC.
A resposta alcançada pelo Egrégio STJ12 é positiva, como se extrai do precedente abaixo:
DIREITO CIVIL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. FRAUDE A EXECUÇÃO. PENHORA REGISTRADA DE COTAS DE PROPRIEDADE DE SÓCIOS DE SOCIEDADE POR COTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. ALIENAÇÃO DE IMÓVEL DE VULTO PELA SOCIEDADE E ENTREGA DO PREÇO AOS SÓCIOS, POR ENDOSSO DE CHEQUE. ESVAZIAMENTO DO VALOR DAS COTAS. INSOLVÊNCIA. FRAUDE DE EXECUÇÃO CONFIGURADA. EMBARGOS DE TERCEIRO MOVIDOS PELA ADQUIRENTE JULGADOS IMPROCEDENTES. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
(…)
2.- A venda de bem imóvel de vulto, na pendência de penhora de cota de sociedade por cotas de responsabilidade limitada, com transferência imediata, por esta, do numerário aos sócios, mediante endosso de cheque, implica o esvaziamento do valor das cotas e, consequentemente, da penhora, devidamente registrada, que sobre elas se realizou.
(…)
4.- Recurso Especial provido, decretadas a fraude à execução e a ineficácia da alienação no tocante ao Recorrente.”
É certo que no caso apreciado pela Corte a fraude se caracterizou pela transferência direta do valor obtido pela alienação aos sócios, todavia a ratio decidendi estabelece um parâmetro interpretativo que coaduna com a tese ora proposta:
“Não importa o valor pelo qual tenham sido avaliadas ou adjudicadas as cotas, o que é essencial é perceber que elas representavam a fração de um capital social que foi significativamente reduzido pela alienação impugnada, diminuindo-se, com isso, a própria garantia do exequente.
O prejuízo emerge, portanto, da própria diminuição efetiva da garantia, da impossibilidade de se obter pela adjudicação ou excussão do bem penhorado o valor que ele originariamente representava.”13
E, ainda:
“Vale lembrar que não se está diante de uma sociedade anônima de capital aberto, em que o valor das ações decorre muito mais da imagem e dos prognósticos que essa sociedade projeta para a sociedade do que pelo seu patrimônio instalado. Nesse tipo societário seria possível admitir que o valor das ações estivesse, até certo ponto, desvinculado do valor efetivo do ativo patrimonial.
No caso das sociedades por cotas de responsabilidade limitada, ao contrário, há relação direta entre o valor da cota e o patrimônio da sociedade, pela justa razão de que a cota social nada mais é do que a representação de uma parte do ativo dessa mesma sociedade.
Nesses termos, a redução do ativo patrimonial, resultante da alienação de bem imóvel, na sociedade de responsabilidade limitada, implica, necessariamente, a redução do valor da cota social.”14
Se os bens não operacionais de uma holding patrimonial traduzem a integralidade de sua existência, admitir a alienação daqueles implica, ipso facto, no esvaziamento da própria penhora de suas quotas sociais.
Por essa razão, entendemos e sugerimos como possível resposta ao debate instaurado pela popularização deste modelo societário, com especial atenção à sua utilização como instrumento de blindagem patrimonial, que o “véu da personalidade jurídica” é mais tênue, tendo por consequência sua autonomia patrimonial mitigada para impedir atos de disposição na exata proporção das quotas sociais penhoradas.
Como no paradoxo que inaugurou este artigo, se a essência da holding criada para reunir bens de seus sócios são os próprios bens, como as tábuas que constituem a alegórica embarcação, ainda que transferidos para pessoa jurídica diversa, devem persistir como garantia do processo em que penhoradas as quotas do sócio devedor.
A alternativa, incompatível com o sistema jurídico, seria a convalidação do abuso da autonomia patrimonial como instrumento de invalidação das regras de direito processual e, por consequência, da própria autoridade do estado-juiz em fazer valer seu julgamento.
1 BRASIL, Lei n. 13.874, de 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica – Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2019.
2 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: lei de introdução e parte geral, 18ª ed. – Rio de Janeiro : Forense, 2022, p. 277.
3 Idem.
4 HOBBES, Thomas. “Of Identity and Difference”, Elements of philosophy: the first section, concerning body. London: R & W Leybourn. p. 100, disponível em https://archive.org/details/b30335838/page/n123/mode/2up, acessado em 14/05/2024.
5 Ibid, p. 138.
6 MAMEDE, Gladston e MAMEDE, Eduarda Cotta. Holding Familiar e suas Vantagens : planejamento jurídico e econômico do patrimônio e da sucessão familiar, 16ª ed., rev., atual., e refor. – Barueri [SP] : Atlas, 2024, p. 27.
7 p. 299/300, g.n..
8 MIRANDA, Francisco C. Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, tomo X: arts. 612-735 – Rio de Janeiro : Forense, 1976, p. 255/256, g.n.
9 ASSIS, Araken de. Manual da Execução, 20ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2018, p.943.
10 Ibid, p. 947/948.
11 Ibid, p. 945.
12 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.355.828/SP, relator Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 7/3/2013, DJe de 20/3/2013, g.n.
13 Ibid, p. 18.
14 Idem.
Fonte: MIGALHAS